Daniel Santos

O inferno são os outros

“O inferno são os outros”

— Jean-Paul Sartre, em sua peça “Entre quatro paredes”

Esta é uma frase que já vi sendo muito usada, por muitas pessoas. E eu também já a usei com muitas pessoas. Mas a questão que sempre me ocorre é, será que estou usando a frase corretamente?

Para me ajudar a esclarecer este ponto, resolvi reunir algumas referências para consultas pelo meu eu futuro.

Sobre a peça

A peça [1], escrita por Sartre em 1945, envolve 3 personagens, que discutem como foram parar no inferno — que, diferente do que pode se pensar, não tem fogueiras escaldantes, nem calor infernal, e é, sim, uma sala decorada ao estilo do Segundo Império Francês, em que todos estão condenados a passar a eternidade, se encarando.

Joseph Garcin, jornalista que vivia em um quartel no Rio, e que morreu após se recusar a lutar em uma guerra sem nome. Sua covardia e insensibilidade fizeram com que sua jovem esposa morresse de tristeza após sua execução; Inèz Serrano, lésbica e funcionária dos correios, virou uma esposa contra seu marido, distorcendo a percepção da esposa sobre seu esposo. levando à subsequente morte do homem, que também é seu primo; e Estelle Rigault, mulher da alta sociedade, que se casou com um homem mais velho por dinheiro e teve um caso com um homem mais jovem. Para ela, o caso é apenas uma aventura insignificante, mas seu amante se apega emocionalmente a ela e ela lhe dá um filho. Ela afoga a criança jogando-a da sacada de um hotel no mar, o que leva seu amante a cometer suicídio.

Na peça, faz-se um grande alarido sobre o fato de que há duas coisas faltando no Inferno: pálpebras e espelhos. Bem, a conexão é bem direta — a única maneira de nos vermos no inferno é através dos olhos dos outros. Nosso senso de nós mesmos é sempre já mediado pelo “olhar”.

Interpretações

No vídeo “Hell is Quoting Other People”, Mike Rugnetta, do Idea Channel da PBS, faz uma ótima explicação, da qual conclui que o inferno são os outros porque estamos eternamente sujeitos às impressões que os outros têm de nós; ao que acrescento que cabe a nós mesmos fazer algo para mudar tais impressões, caso discordemos delas — e isso enquanto é tempo, enquanto estamos vivos.

Da revista Super Interessante, com destaque em negrito acrescentado por mim:

Segundo o filósofo, antes de tomar qualquer decisão, não somos nada. Vamos nos moldando a partir das nossas escolhas. Toda essa liberdade resulta em muita angústia. Essa angústia é ainda maior quando percebemos que nossas ações são um espelho para a sociedade. Estamos constantemente pintando um quadro de como deveria ser a sociedade a partir das nossas ações.

Sarah Bakewell, autora de “At The Existentialist Cafe” [2], explica muito bem a fala da peça em seu livro, de acordo com esta resposta, postada em um thread do r/askphilosophy. Eu traduzi livremente o trecho do livro incluído na resposta, para mim, a melhor referência que já encontrei até agora sobre o significado real da frase (aqui, novamente, os destaques em negrito são meus, adicionados após a tradução):

Episódios de olhar competitivo recorrem ao longo da ficção e das biografias de Sartre, o que também ocorre em sua filosofia. Em seu jornalismo, ele se lembra do desagrado, após 1940, de sentir-se avaliado por olhares, como membro de um povo derrotado. Em 1944, ele escreveu uma peça completa sobre isso: Huis clos [...]. Ela retrata três pessoas aprisionadas juntas em um quarto: um desertor militar acusado de covardia, uma lésbica cruel, e uma interesseira sedutora. Cada um deles olha com julgamento para pelo menos um dos outros, e cada um deles anseia escapar dos olhares impiedosos de seus companheiros. Mas eles não podem fazer isso, pois estão mortos e no inferno. Como a última fala da peça, citação extremamente reproduzida e frequentemente mal-interpretada, nos diz: "O inferno são os outros." Sartre mais tarde explicou que ele não quis dizer que as outras pessoas são infernais de maneira geral. Ele quis dizer que depois de nossa morte, nos tornamos congelados frente à visão que os outros têm de nós, permanentemente incapazes de rechaçar **(ou contrapor) **suas interpretações. Enquanto vivos, ainda podemos fazer algo a respeito da impressão que transmitimos; na morte, esta liberdade se vai, e somos deixados enterrados nas memórias e percepções das outras pessoas.

Ao se utilizar da fala ”o inferno são os outros”, a peça de Sartre considera que o outro, na verdade, é fundamental para o conhecimento de si mesmo: o ser humano precisa se relacionar com os outros para construir a sua identidade, e este processo nem sempre é tranqüilo e harmonioso.


Da música “O inferno são os outros, da banda Titãs, vem esta estrofe:

O problema não é meu
O paraíso é para todos
O problema não sou eu
O inferno são os outros, o inferno são os outros


Notas

[1] O título original da peça é “Huis clos”. Em inglês, recebeu o título “No Exit”, de onde se extrai a frase “Hell is other people”. “Entre quatro paredes”, tradução brasileira, originou a frase “O inferno são os outros”, que discuto nesta página.

[2] Eu talvez venha a ler, futuramente, “At the Existentialist Café”; trata-se de uma obra sobre filosofia e existencialismo, discutindo as vidas de nomes como Kierkegaard, Nietzsche, Dostoevsky e Kafka, e as filosofias de Heidegger, Husserl, Sartre, Beauvoir, Camus, Karl Jaspers e Merleau-Ponty; neste momento, ao menos, no entanto, me parece leitura pesada, para a qual não me sinto ainda preparado.

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